domingo, abril 30, 2006

O ponto


Era uma vez um ponto. Um ponto comum em um lugar comum de uma comunidade comunista comum em que toda a legislação e regras de suas leis anárquicas eram criadas e cumpridas por um único ponto, que era ele mesmo. Era apenas um ponto recolhido à insignificância pontual de sua unicidade. Era uma época feliz, onde não haviam impostos, sogras, chefes, empregados, cunhados, genros, ladrões, políticos, e ninguém chegava atrasado por causa de trânsito. Primeiro, porque não existia lugar algum para se chegar. Segundo, porque não havia trânsito. E terceiro, porque não existia nem tempo para se poder chegar atrasado.
Certa vez, pouco antes de o tempo nascer, o ponto pensou e constatou que existia. E, ao constatar isto, percebeu que não significava nada. Mas nada era amplo e, por só existir ele e nada, se achou importante, mesmo sendo tão insignificante, pois pelo menos era alguma coisa.
Se achando importante, pensou que nada era nada a não ser vazio e começou a andar. Cada passo que andava, nascia um outro ponto. E ao continuar andando, deixou de ser ponto e se tornou reta. Mudou de direção e se tornou curva. Curvando, viu aquele bando de pontos e resolveu que iria seguir aquela linha até encontrar seu início. Achou que deveria dar o nome do início de Futuro, por não achar nome melhor e por não ter o que fazer. Chegando ao início, verificou o Futuro era também um ponto.
Isto o apavorou. Sabia que a única coisa que o tornava importante era ser único. Então ele comeu o Futuro. Olhou e viu que sempre havia um outro ponto no lugar do início. Pior, que existia milhares de pontos atrás deles, os quais chamou de Passado. Neste momento, o Tempo nasceu. O ponto se apelidou de Presente, para se manter diferente e resolveu comer todos os outros pontos, Passados e Futuros. Mas conforme andava, o Passado surgia no seu lugar e o seguia. Correu atrás do Futuro que, apavorado com a voracidade do Presente, correu em todas as direções. E pra cada Futuro que o Presente devorava, havia milhares de outros Futuros nos quais o Presente jamais poderia alcançar.
Então, o Presente passou a escolher qual Futuro iria devorar, mesmo que às vezes tivesse que engolir um Passado como aperitivo.
Agora, por que estou contando esta história? Por nada, porque estou escolhendo que futuro devorar? Nada. Só escrevi esta história porque existem sogras, chefes, empregados, cunhados, genros, ladrões, políticos, e um puta trânsito que me torram a paciência a cada momento que passa e principalmente por ter nada para fazer. Acho que preciso procurar o que fazer antes que me torne escritor.

Cara alegria,


Minha cara alegria,
O que você diria
Se eu dissesse que te chamaria
Para simplesmente ouvir
Um lírio declamando poesia?

O que você faria
Se eu te chamasse um dia
Para escutar as pedras a espreguiçar,
Enquanto a noite finda,
E não nasce o dia?

Mas não pergunto.
Não falo
Me escondo em mim mesmo
Dentro de um castelo de pedra e gelo

Imaginando como seria,
Se eu te amasse um dia,
Enquanto choro por dentro
E por fora rio.

Meu nome em grego é coragem,
Mas ao te ver,
É tudo que me falta,
E de grego, viro tupi, sem o acento.
E agouros tristes choro
Na antítese de teu nome, alegria

Sem julgamentos,
Sem medo.
Antes que me tranque novamente
Em uma casa de areia e névoa
Escondida em meu pensamento,
Inconstante como o vento
Pergunto eu, timidamente,
Se eu poderia gostar de você,
Minha cara Alegria.


sábado, abril 15, 2006

O anjo


Acordei em um lugar escuro. Lembro muito pouco de como fui parar ali. Só lembro de “ter visto duendes", puras alucinações em sentido, como um cachorro rosa gritando “Um dia as velas se apagam!”, mortes madrinhas, vacas lambidas azuis... Algo que tomei na noite anterior com certeza não me fez bem... “Fosse o que fosse já deve ter passado”, pensei eu. O quarto em que estava era palidamente iluminado pela luz de uma pequena janela no alto... Depois que meus olhos se acostumaram com a escuridão, tentei entender onde estava e passei a observar o quarto.
Foi então que o vi... Havia um anjo de asas negras encolhido junto à parede. Não entendi bem por quê um anjo de asas negras... Afinal, todos sabem que anjos possuem asas brancas. O fato é que ele estava ali, naquele canto, e tinha asas negras. E por mais que eu negasse, dissesse a mim mesmo que ele não existia e não quisesse vê-lo, ele estava ali. Tratei-o como uma outra alucinação qualquer, ou qualquer coisa sem importância do dia-a-dia, já que se anjos “normais” não existem, de asas negras então...
Foi então que ele levantou o rosto. Carregava uma expressão de tanto ódio, tão puro ódio, que teria feito flores murchar apenas com o olhar. Senti um enregelar na espinha, e os membros paralisados... Sabia que não era real, mas era algo tão ameaçador, tão amedrontador que fiz a única coisa que podia fazer... Gritei. Senti o som de minha voz ecoar nas paredes, e tal ressôo soou como um berro de uma alma atirada aos penhascos infernais... Embora eu ainda tivesse a certeza de que estava vivo.
Foi neste momento que ele me encarou, com aquela expressão odiosa... Duvidei de que estava vivo...Minto. Desejei estar morto... Pior, tive a certeza de que fora atirado com vida ao inferno. E ele continuou a me encarar... E eu me encolhi no canto oposto. Medo. Tal palavra de quatro letras nunca teve tanto significado para mim naquele momento, embora jamais saiba como definir o que se passou... Durou pouco mais que um segundo na eternidade. Eu sabia que era uma alucinação. Tinha que ser uma alucinação! Tentei em vão me distrair com qualquer coisa, a de FORMA ALGUMA ENCARÁ-LO... Mas por mais que tentasse, mais sentia aquele olhar odioso penetrando nas profundezas de minha mente...como se eu fosse a única razão de tal cólera tenebrosa, como se eu fosse a pessoa mais odiada do universo...
E eu o odiei por isto. Encarei-o. Encarei-o com a mesma expressão encolerizada, com a mesma repulsa, com a mesma face intimidadora... Mas só foi neste instante em que vi o seu rosto, em que olhei-o nos olhos...o anjo estava chorando. Ele estava chorando desde o início, e tal rosto encolerizado era justamente pela minha indiferença aos seus ...
—Parece que ele está mais calmo agora— disse uma voz.
—Vamos tirá-lo daí e levá-lo para uma cela comum—disse outra voz.
—Sim, mas vamos dar-lhe mais uma dose de calmante, só pra garantir. —respondeu a primeira voz.
Uma porta se abriu e a luz externa iluminou o quarto. Era uma cela acolchoada, usada para colocar loucos violentos ou agitados. Fui arrastado pela camisa-de-força (daí minha paralisia...) que estava vestindo por dois enfermeiros. (“Viu o jogo do Fruzão ontem?” “Pô, mó pênalti roubado no finalzinho” comentavam os enfermeiros). A cela completamente estava vazia, com exceção uma única pena negra. “Aos meus inimigos, àqueles que tanto odeio sequer meu ódio, somente minha indiferença.” Pensava eu, antes de adormecer sob efeito do calmante.

domingo, abril 02, 2006

Estátuas


Conta-se esta história, retirada de qualquer paisagem etérea, de um poeta perdido em algum lugar remoto da face da Terra, e certo mal e agonia que o teria acometido. Talvez a paisagem não fosse não tão remota assim. De fato, poderia ter sido em qualquer lugar, e poderia ser descrita de qualquer maneira pela mente já doentia do poeta. Mas minhas observações não interessam, uma vez que sou apenas um mero observador externo, sentado na janela observando a paisagem etérea criada pelo poeta para ser sua própria masmorra. E cada um entenda esta história à sua maneira, contada em poesia e escrita em prosa ou vice-versa.
Havia uma pessoa naquele canto.
Encostada na pedra cantando aos prantos
Versos que não significavam tanto.

Como poderia chorar tanto
Em um dia ensolarado numa praça,
Com crianças sorrindo como encanto
Casais enamorados abraçados
Fossem eles idosos ou jovens apaixonados
Curtindo um dia cheio de graça?

Puro engano,
Dizia ele que não estava chorando.
“Estátuas não choram.”
Recitava o poeta insano.

E ele falava sobre cães atropelados,
Sobre abutres e condenados,
Pontos, retas e nada,
E de “mas”, nada.

E falava da tundra e da neve,
E de ventos frios,
De gelo, tempestades, neblinas,
E de sol, calor, temperaturas amenas,
Praias, verões, desertos, mares, rios,
E por fim gritava, como se fosse sua sina:
“Estátuas não Choram!!!”

E retornava ao lamento,
Rindo das desditas
Disfarçando a alma entristecida.
E saiu, palidamente sorrindo.
Disse ainda, por um último momento:
“Estátuas não choram”.

E na névoa ele se foi.
Ainda escuto seu lamento moribundo, “Estátuas não choram”...
E depois de tanto tempo, cada vez que escuto o ressoar deste verso (e como ainda ressoa, meu Deus!), entendo afinal que mal acometia o poeta.
É bem verdade que estátuas parecem não chorar. São frias, imóveis, impassíveis... Mas elas choram. Só choram quando chove, para que suas lágrimas escorram disfarçadas sobre seus rostos com as águas da chuva (seria também tais águas o choro de alguém?). Algumas continuam a chorar depois da chuva, apesar do rosto insensível, deixando perceber ao menos as marcas das lágrimas.
O poeta sabia mais que ninguém sobre isto. E era esta sua desgraça. Esqueceu como amar, como odiar, como sorrir, como chorar,... e isto até as estátuas sabiam. O poeta perdera o que lhe era mais caro. O poeta perdera a poesia...